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As Mulheres e o Budismo (6)


Joélle Désiré-Marchand



Uma pioneira em Lhassa, por Joélle Désiré-Marchand, décimo quarto capítulo do livro O Sagrado na História do Budismo, São Paulo, Ediouro Duetto, 2010 (páginas 109 a 114). Marchand nos conta da história de Alexandra David-Néel (pseudônimo de Louise Eugénie Alexandrine Marie David (Saint-Mandé, 24 de outubro de 1868 — Digne-les-Bains, 8 de setembro de 1969), a pioneira budista de Paris e a primeira europeia a ser ordenada lama.


UMA PIONEIRA EM LHASA

"Seja sua própria luz. Seja seu próprio refúgio. Não se entregue a nenhum refúgio fora de você. (. .. ) Aqueles, ó Ananda, que a partir desse dia, ou depois de minha morte, forem sua própria luz e seu próprio refúgio, que não se entregarem a nenhum refúgio exterior, que, fiéis à verdade, a terão como sua luz e seu refúgio, aqueles serão os primeiros entre meus discípulos: eles atingirão o objetivo supremo."


Essa mensagem, com palavras do Buda a seu discípulo Ananda, foi enviada, em abril de 1969, aos amigos do budismo, durante as comemorações do nascimento do mestre (Wesak). A remetente era Alexandra David-Néel, então com 100 anos de idade. Foi uma das últimas mensagens que escreveu; ela morreria a 8 de setembro.


Em sua juventude, lá pelos idos de 1890, filha de pai francês e mãe belga, Alexandra tentava ganhar a vida em Paris como cantora, mas sua verdadeira paixão era intelectual: as religiões e as filosofias. O estoicismo guiara em grande parte sua adolescência.


Amiga de intelectuais anarquistas como Elisée Reclus, feminista, adepta da maçonaria, jornalista, progressista, independente e rebelde, ia sempre ao Museu Guimet, em cuja biblioteca se elevava uma magnífica estátua do Buda. Na atmosfera de quietude desse lugar, criado com o intuito de tornar conhecidas as religiões do Oriente, nasceu sua vocação: ela adotou o caminho espiritual daquele que fora o príncipe Sidarta Gautama.

Foi consagrada como "a primeira budista de Paris".


Até então, o budismo só era conhecido por intelectuais especialistas nas civilizações orientais ou adeptos dos caminhos "esotéricos, espíritas, teosóficos ou ocultistas, incoerentes misturas de ideias retiradas de quase toda parte", ela mesma escreveu.


Nenhuma dessas abordagens a satisfazia. Ela fizera cursos na Sorbonne e no College de France, mas era o budismo real, contemporâneo, que a atraía, e não o dos universitários. Seus escritos frisam o papel essencial da razão e do saber para o budista. "Toda a Lei, todos os preceitos do Buda se resumem a isto: saber", escreveu Alexandra, em 1895, na publicação L'étoile socialiste (A estrela socialista).


Em 1901, na Revue de Sociologie et d'Ethnographie (Revista de sociologia e etnografia), ela lembrou que "Sidarta [o Buda histórico] é um filósofo materialista, no sentido elevado da palavra. Ele não adora nada, não invoca nenhum ser celeste. Ele não reza, ele medita; não é um devoto suplicante, é um pensador".


Depois, ela evocou o eixo central do ensinamento: "A causa do sofrimento é a ignorância. Portanto, o único preceito do mestre será: combata a ignorância em você mesmo e nos outros. (. .. ) Tudo o que se tem de digressões sutis ou de lucubrações malucas sob o nome de escrituras búdicas é obra de discípulos que viveram, na maioria, vários séculos após a morte de Sidarta, e nelas só se poderia ver suas concepções pessoais".


Em texto posterior, endereçado à Sociedade Budista de Kandy, no então Ceilão, Alexandra explicou que o budismo não é nem uma religião, já que não tem como base um deus criador, nem uma doutrina, pois não impõe nenhum dogma, e sim um caminho que permite vencer o sofrimento.


Alexandra deu conferências na Sociedade Budista da Inglaterra (em Londres e Edimburgo). Ela se correspondeu com os budistas do Ceilão, um polo essencial, e também com o célebre Anagarika Dharmapala, que, em 1910, pediu a ela que participasse do congresso do Livre Pensamento em Bruxelas. Alexandra David-Néel tornou-se a primeira porta-voz dos modernistas budistas na Europa.


Em 1911, ela publicou um livro essencial: Le Bouddhisme du Bouddha (O budismo do Buda), no qual, disse ela, encontra-se "não uma dissecação da letra morta das velhas escrituras, mas um budismo vivo que os sábios, pioneiros do movimento de despertar atual, consideram semelhante ao espírito da doutrina primitiva". Obra de divulgação de alto nível, foi sempre reeditada e continua tão viva quanto o budismo que ela apresenta.


Pouco depois do lançamento da obra, ela iniciou uma imensa viagem pela Ásia, que se prolongou por 14 anos. Só retornou em 1925. Ao partir, escreveu a seu marido: "Meu estoque de conhecimentos a difundir se esgotou. Preciso renová-lo, aumentá-lo ... ".


No Ceilão, depois na Índia, Alexandra foi recebida na qualidade de personalidade budista. Assim, encontrou mestres, teve acesso a lugares normalmente fechados aos ocidentais, e até obteve uma audiência com o 13° Dalai Lama, que na ocasião vivia no norte de Bengala e se preparava para voltar ao Tibete. Esse chefe espiritual jamais havia encontrado uma mulher ocidental. O diálogo aconteceu em 15 de abril de 1912, em Kalimpong, às portas de Sikkim. O filho do marajá de Sikkim serviu de intérprete e convidou Alexandra para visitar o pequeno estado himalaico, onde ela permaneceu por sete meses e conheceu um "personagem singular e fascinante: o superior do monastério (gomchen) de Lachen, um homem que gozava de uma extraordinária reputação. Uma espécie de mago e santo".


O budismo tibetano praticado em Sikkim era de uma religiosidade colorida, rica em rituais, cerimônias e músicas.


Dotado de um panteão exuberante, parecia-l he muito distante do ensinamento original. Desde 1911 ela estigmatizava a atitude dos "religiosos": "Daquele que ergueu o mais alto estandarte da razão humana, eles fizeram um ídolo, uma divindade (. .. ), e o incenso queima e as flores se acumulam diante das estátuas do mestre que denunciou a loucura dos ritos religiosos!".


Em Mystiques et magiciens du Tibet (Místicos e magos do Tibete), ela abordou sua "concepção puramente filosófica do budismo" em relação ao "budismo lamaísta" de tipo religioso. Admitida para pregar nos monastérios de Sikkim, ela iniciou uma reforma religiosa que não deu em nada. Em seguida a uma viagem ao Nepal, na região natal do Buda, após uma longa estada em Benares, Alexandra voltou a Sikkim no fim de 1913, de onde ela só iria partir em 1916, depois de ter sido aceita para seguir os ensinamentos do famoso gomchen de Lachen. Durante cerca de dois anos, ela viveu junto desse mestre tântrico originário de uma das principais linhagens do budismo tibetano.


Morando numa caverna-eremitério situada a 4 mil metros de altitude, ela foi posta à prova e fez "a experiência da vida contemplativa segundo os métodos lamaístas", a dos ascetas da "Terra das neves". A vida era dura, o mestre exigente, as iniciações difíceis, mas a aluna corajosa, tenaz e muito talentosa. "Um mestre só pode ser aquele que abre uma porta: cabe ao discípulo ser capaz de ver o que se encontra além dela", escreveu Alexandra.


Não se trata de estudos intelectuais, mas de experiências profundas, físicas e mentais, transmitidas de mestre para discípulo há séculos. A experiência não pode ser transmitida, os ensinamentos "secretos" têm por objetivo fazer brotar o verdadeiro "eu".


Alexandra recebeu o nome de "Lâmpada de sabedoria", dois anéis de iniciada, a autorização para vestir o hábito monástico e a permissão para transmitir uma parte dos ensinamentos recebidos. A partir daí, ela passou a pertencer à reduzida elite "dos que sabem". Era seu dever de budista ajudar os outros a progredir no caminho do conhecimento: ela se dedicou a isso em seus livros.


"O que eu aprendi durante esses anos de retiro? Para mim, é difícil precisar e, no entanto, adquiri muitos conhecimentos." Ela se manteve muito discreta em relação a esse tema. Fazia apenas breves alusões à sua "experiência pessoal" sobre o caminho místico da "Senda direta".


Reconhecidamente, atingiu um nível elevado nos ensinamentos. Em Initiations lamai'ques (traduzido no Brasil como Iniciações tibetanas) e Les enseignements secrets des bouddhistes tibétains (Os ensinamentos secretos dos budistas tibetanos), ela propôs uma "reportagem" sobre os ensinamentos. Em sua narrativa Mystiques et magiciens du Tibet (Místicos e magos do Tibete) pululam informações pitorescas e então inovadoras sobre o budismo tibetano.


Alexandra prosseguiu sua busca búdica na Birmânia, no Japão, na Coreia, na China e no Tibete novamente, hospedando-se de 1918 a 1921 no grande monastério de Kumbum. Ali, estudou o famoso texto da Prajnaparamita, do qual ela publicou um resumo intitulado La connais­sance transcendante (O conhecimento transcendente).


Sua proeza de ser a primeira mulher ocidental a entrar em Lhassa, em 1924, tornou-a célebre no mundo inteiro. Os livros que ela publicou desde sua volta suscitaram um entusiasmo sem precedentes em relação ao Tibete e a seu budismo lamaísta.


Alexandra tinha a pena viva e marcante; sabia prender o leitor, misturando habilmente suas próprias aventuras e seu conhecimento profundo do universo tibetano.


Em seu testamento de 1957, a exploradora fez menção a um terreno que a Maha Bohdi Society de Calcutá ofereceu-lhe em Sarnath, perto de Benares. Alexandra pediu que uma casa fosse construída com a doação que ela ofereceria à sociedade, em "memória de seu filho adotivo, o lama Yongden, companheiro fiel de suas viagens" - como consta em inscrição no local.


Yongden morreu em 1955, Alexandra, em 1969. As cinzas de ambos foram jogadas no Ganges, em Benares, conforme pedido dela. Isso exprime a importância que ela dava à Índia, terra do nascimento do mestre a quem ela devia tudo. Graças ao caminho espiritual que ele havia proposto e que ela adotou aos 20 anos de idade, pôde viver plenamente sua vida e ir ao limite de seu excepcional des-tino, dever eminentemente nobre para os orientais.


JOËLLE DÉSIRÉ-MARCHAND é engenheira de estudos cartográficos. E autora de dois livros sobre a primeira budista de Paris, sendo o último Alexandra David-Néel, de Paris à Lhassa, de l'aventure à la sagesse (Alexan-dra David-Néel, de Paris a Lhassa, da aventura à sabedoria)

 
 
 

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